Profecias como instrumento narrativo - A Canção de Aquiles e Lendário
- Amanda Ferreira
- 21 de nov. de 2023
- 5 min de leitura

Quando se fala de histórias fantásticas, uma das tropes mais comuns é a profecia do escolhido. Já vimos isso em As Crônicas de Gelo e Fogo, Percy Jackson e os Olimpianos, Harry Potter, Era Uma Vez Um Coração Partido e incontáveis outros. É geralmente aquela frase que se repete diversas vezes ao longo da história e pode servir a narrativa de diversas formas: incentivando o personagem a tomar certas decisões; foreshadowing para o leitor do que vai acontecer mais pra frente; até mesmo como justificativa para o protagonista ser o protagonista.
Mas têm dois livros que utilizam profecias como um instrumento narrativo que cria cenas poderosas e infinitamente mais profundas do que se esse elemento fosse removido. Estou falando de A Canção de Aquiles e Lendário (da série Caraval) e você encontrará spoilers para ambos os livros a partir daqui.
A Canção de Aquiles de Madeline Miller
Nessa releitura do mito grego, Pátroclo e Aquiles são os personagens principais, garotos que cresceram juntos e se tornaram amantes. Mas enquanto Pátroclo é um príncipe exilado e sem poder, Aquiles é heroico, brilhante e um guerreiro prometido. Quando a Guerra de Troia começa, a profecia de Aquiles se revela e, diferente da maioria das profecias na ficção, esta dá a ele uma escolha.
“Se você não for a Troia, sua divindade fenecerá por desuso. Sua fama diminuirá… Quando morrer, o povo perguntará: de quem estão falando?”
“Se você for a Troia, jamais regressará. Morrerá lá, jovem demais.”
Aquiles então tem uma escolha: ir para Troia, lutar na guerra, se tornar um grande guerreiro e morrer lá. Ou não participar da guerra, não cumprir seu destino, ser esquecido por todos e morrer de velhice sem nenhuma conquista.
Pátroclo quer que ele escolha ficar, quer que ele escolha uma vida longa ao lado dele ao invés de uma vida curta de fama. Mas, Aquiles, é claro, escolhe ir. Pátroclo o acompanha, mas está desesperado por uma maneira de manter seu amado vivo. Ele, então, descobre mais uma parte das circunstâncias da morte profetizada de Aquiles.
“A morte de Heitor acontecerá primeiro.”
Heitor é o melhor soldado de seus inimigos, o único que chega ao nível de Aquiles. Por acreditar que Aquiles é o único capaz de matar Heitor, Pátroclo pede que ele não o faça. Se Heitor não morrer pelas mãos de Aquiles, Aquiles também não pode morrer em seguida. Aquiles promete que não matará Heitor e Pátroclo acredita que seu plano manterá Aquiles a salvo. Ele precisa acreditar nisso, precisa acreditar que Heitor nunca morrerá, nem mesmo quando for velho, pois a morte dele é a última peça no efeito dominó da profecia que termina com a morte de Aquiles. Os leitores, apesar de familiarizados com a antiga história, não conseguem se impedir de ter esperanças também.
Mas então Heitor faz a única coisa que Aquiles nunca poderia perdoar, a única coisa que faria Aquiles quebrar sua promessa e matá-lo. Heitor mata Pátroclo. Essa cena, em que Pátroclo observa Heitor se aproximando com uma lança sem poder fazer nada para impedi-lo, é intensa e desesperadora, porque não significa apenas a sua própria morte, mas a morte iminente de seu amor.
Mesmo após a morte de Pátroclo, a história continua sendo narrada por seu fantasma, que observa de longe enquanto Aquiles, cego pela raiva e pela dor da perda, ignora a promessa que fez e assassina Heitor, mesmo sabendo que isso cumpriria parte da promessa de sua própria morte.
Ao invés de restringir os passos dos protagonistas com promessas pré-estabelecidas, a profecia de Aquiles dá aos personagens uma série de escolhas para desafiar o destino. Por isso mesmo é que é tão trágico quando todas elas levam ao mesmo final, porque os personagens e os leitores passaram a ter uma fagulha de esperança.
Lendário (Trilogia Caraval) de Stephanie Garber
A trilogia segue a história de duas irmãs que participam do jogo mágico Caraval, em que sonhos se tornam realidade e a realidade e ilusão se misturam. No início do segundo livro, Donatella deve uma informação a um inimigo perigoso. Ela precisa descobrir o verdadeiro nome de Lenda, o misterioso mestre do Caraval, para dar em troca da localização de sua mãe. Ela recorre a um vidente para descobrir como obter a informação, mas o que recebe é uma profecia.
“Você deve participar do próximo Caraval. Se vencer o jogo, ficará frente a frente com Lenda.”
“Lenda não é o prêmio, mas, se você vencer o Caraval, o primeiro rosto que verá será o de Lenda… Mas esteja avisada: vencer o jogo vai custar um preço do qual você irá se arrepender depois.”
Sem escolha, Donatella participa do jogo e se esforça para vencer. O que poderia ser um enredo desinteressante, com a garota procurando pistas para desmascarar Lenda, se torna um jogo imersivo com recompensas e custos igualmente altos. Donatella passa dias seguindo as pistas do jogo com a presença de Dante, um dos atores que trabalha no Caraval. Quando finalmente chega no fim do jogo, a profecia monta o cenário perfeito para uma revelação maravilhosa.
“Tella pegou audaciosamente o Baralho do Destino amaldiçoado da mãe e venceu oficialmente o Caraval.”
“— Tella. — Uma voz grave e dolorosamente familiar a chamou.
Se você vencer o Caraval, o primeiro rosto que verá será o de Lenda.
Não. Não. Não.
Tella fechou rapidamente os olhos antes que pudesse vê-lo. Talvez, se não abrisse os olhos, ele fosse embora, ela visse outro rosto e Dante não fosse Lenda.”
O momento mais intrigante é sempre aquele logo antes da profecia se cumprir. Quando os personagens temem o destino ao ficarem cara a cara com ele. É quando, mesmo sabendo que não há mais volta, eles ainda se recusam a acreditar no que está prestes a acontecer. Mas não há como fugir do destino, então Donatella abre os olhos e o aceita.
Profecias podem ser elementos às vezes excessivamente utilizados em histórias de fantasia, mas se planejados de forma envolvente podem ser instrumentos narrativos que elevam as cenas a outro patamar. Se quiser utilizar uma em seu livro, pense nos maiores desejos e medos de seus protagonistas, no arco que eles percorrem na história e em suas maiores decepções. O maior medo de Pátroclus era perder Aquiles, por isso ele tenta desafiar o destino. Donatella, por sua vez, se apaixonou por Dante durante o jogo e a revelação de que ele é Lenda muda tudo pelo qual ela estava lutando.
Antes de escrever uma profecia para o seu livro, pense em quais possiblidades de escolhas ela pode trazer aos seus personagens. Frases construídas de formas ambíguas também podem ser interessantes, por não se saber exatamente o final que está sendo prometido. Talvez eles tenham interpretado errado e isso faça suas escolhas durante a narrativa completamente equívocas. As opções são infinitas, apenas se lembre de fazer o momento em que a profecia se cumpre absolutamente de tirar o fôlego!
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